Desde os anos 1990, o Brasil vem ampliando a oferta de serviços públicos ao cidadão, caracterizando-se pelo desenvolvimento de um estado de bem-estar tardio. Entretanto, a recente crise econômica traz de volta lembranças da profunda turbulência fiscal dos anos 1980, o que intensifica a preocupação sobre a capacidade de manutenção de algumas políticas. Em diferentes modelos de organização do Estado, persistem os dilemas sobre financiamento para oferta de serviços públicos. No caso brasileiro, a questão essencial é como manter o modelo previsto na Constituição para o combate da desigualdade e a melhoria das condições de vida da população.
O artigo 6º da Carta Magna estabelece como direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados. Essa obrigação leva o Estado a agir de modo a diminuir a desigualdade social, aplicando, também, princípios de justiça distributiva. E, como garantia para que existam investimentos mínimos em algumas áreas, a Carta de 1988 estabelece, por exemplo, a vinculação proporcional de receitas tributárias para a saúde e a educação. Porém, há questionamentos sobre o montante aplicado em gastos sociais, que o consideram alto e ineficiente.
Hoje, o maior volume de recursos orçamentários está associado a gastos com desonerações fiscais, pagamentos de juros da dívida pública e investimentos aplicados pelos bancos de fomento em projetos do setor privado. Ao mesmo tempo, os gastos com educação, saúde, saneamento, habitação e assistência social estão longe de serem suficientes. Estamos muito atrasados em relação aos países da OCDE ‒ Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico e da própria América Latina, como Argentina, México, Uruguai, Cuba e Chile. Desse modo, medidas de ajuste que signifiquem cortes lineares dos investimentos sociais podem gerar um efeito regressivo, contribuindo para um aumento das desigualdades e uma queda no padrão de desenvolvimento.
Por outro lado, o aumento do déficit fiscal e da dívida pública preocupa, assim como as consequências da crise sobre os governos municipais, que são os responsáveis mais diretos pela entrega de serviços ao cidadão. Afetadas pelos impactos das desonerações sobre o FPM ‒ Fundo de Participação dos Municípios e pela redução da atividade econômica com a consequente redução das receitas, autoridades locais têm buscado alternativas. Contudo, recursos adicionais ou mudanças na divisão das receitas tributárias entre União, Estados e municípios não estão previstos. Para piorar, a ampla maioria dos municípios mantém enorme dependência dos repasses dos Estados e da União. Segundo o Portal Meu Município, em 2013, somente 19 das 5.067 cidades pesquisadas conseguiram gerar receitas próprias maiores que essas transferências. Com o acúmulo de atribuições e o aperfeiçoamento das demandas por serviços públicos, os municípios têm sido obrigados a criar alternativas que ampliem as receitas e reduzam as despesas, ao mesmo tempo em que adotam meios para ganhar eficiência.
A boa notícia é que existem saídas. IPTU Inteligente, remuneração por metas para fiscais de tributos, reestruturação da gestão da Dívida Ativa, melhoria na gestão de processos, redefinição de contratos e identificação de oportunidades de captação de recursos são algumas soluções a ser postas em prática pelas organizações públicas. Essas iniciativas podem melhorar a relação receita-despesa e assim contribuir para processos mais inteligentes, que levem a maior qualidade do gasto, evitando cortes lineares ou reduções na oferta de serviços essenciais à população.
Ainda no campo das receitas, a criação de políticas de desenvolvimento econômico municipal é um importante instrumento para estimular o dinamismo da economia e promover a inclusão social. Tais mecanismos têm apostado na organização dos agentes econômicos (públicos e privados), no fortalecimento da infraestrutura local, na articulação entre as diversas políticas, no acesso a crédito, no mapeamento de boas práticas e em estratégias para atração de novos investimentos. São experiências baseadas em modelos de governança colaborativa e em arranjos interssetoriais com elevado investimento nas capacidades de coordenação no longo prazo.
Colocar em prática políticas de modernização e eficiência da gestão financeira ou voltadas a promover o dinamismo econômico exige liderança e fortalecimento das capacidades institucionais. Pressupõe reformulação de processos e mecanismos de coordenação e mobilização que podem organizar os distintos interesses para identificar problemas e possibilidades de mudanças. Com esses cuidados, é possível trilhar de forma inteligente os caminhos para passar pela crise sem comprometer a oferta de serviços públicos nos municípios e estados do país.
Por Sergio Andrade, cientista político, empreendedor social e diretor executivo da Agenda Pública.